Jair Bolsonaro defendeu o trabalho infantil, em uma live, na noite desta quinta (4). Usou a si mesmo como exemplo, contando que, “com nove, dez anos de idade”, colhia milho em uma fazenda na qual seu pai trabalhava no interior de São Paulo.
“Não fui prejudicado em nada. Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar tá cheio de gente aí ‘trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil’. Agora quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada”, afirmou.
É difícil afirmar se o presidente foi prejudicado ou não, uma vez que uma série de fatores influenciam no desenvolvimento de uma criança. Mas a justificativa que ele usa para defender o trabalho infantil é, certamente, a de alguém que não explorou o seu potencial intelectual. Afinal, apenas quem observa o mundo a partir de um maniqueísmo raso não é capaz de compreender que o trabalho não é a única saída para evitar que uma criança seja dependente de drogas.
“Fiquem tranquilos que eu não vou apresentar nenhum projeto aqui para descriminalizar o trabalho infantil porque eu seria massacrado. Mas quero dizer que eu, meu irmão mais velho, uma irmã minha também, um pouco mais nova, com essa idade, oito, nove, dez, doze anos, trabalhava na fazenda. Trabalho duro”, afirmou também o presidente. Não, presidente. O senhor não seria massacrado. Mas seu projeto seria, muito provavelmente, considerado inconstitucional, como tantos decretos que você apresentou.
Ao defender o trabalho infantil, Bolsonaro não apenas cometeu um dos maiores desserviços aos brasileiros desde que chegou à Presidência da República. Também chutou com força o futuro do Brasil – que, com suas declarações, ficou mais longe.
Meu pai também trabalhou na roça quando criança. Homem correto, vida digna. Mas fez todos os sacrifícios, os possíveis e os impossíveis, para que seus dois filhos não tivessem que passar pelas mesmas privações que ele, podendo se dedicarem aos estudos e irem bem mais longe do que ele foi. Creio que esse deveria ser o desejo não apenas de pais e mães, mas também de uma nação: que seus filhos e filhas possam ir mais longe, vivendo mais e melhor, tendo a vida que desejaram, sem precisar passar pelas mesmas dificuldades que as gerações anteriores.
Desconfio que, pelo tom laudatório do vídeo, não seja esse o desejo do presidente.
Trabalho infantil não precisa ser hereditário
“Trabalhei desde criança e isso moldou meu caráter”, “aprendi a dar valor às coisas com o suor do meu trabalho desde muito pequeno”, “criança ou está vagabundeando ou está trabalhando” e “para consertar uma criança delinquente é só por no trabalho pesado”. Discursos como o de Bolsonaro são comuns no país, com o trabalho sendo ministrado como remédio à infância.
Até entendo que muita gente, como o presidente, sinta que sua experiência de superação individual é bonita o suficiente para ser copiada pelos outros. Mas o fato é que o trabalho infantil não precisa ser hereditário.
Por isso, é triste ver parte dos trabalhadores, que foi acostumada a ser explorada, passando a justificar a sua própria exploração e a de seus filhos, repetindo bovinamente um discurso que foi reservado aos mais pobres: só o trabalho liberta.
O artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 anos de qualquer trabalho a menores de 16, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14. Crianças podem ajudar nas tarefas domésticas e aprender o ofício dos pais, claro, mas desde que sua participação não seja fundamental para a manutenção econômica da família.
Há, contudo, projetos no Congresso Nacional que declaram que o rebaixamento da idade mínima poderia mudar a vida das crianças e adolescentes que são pedintes nas ruas ou aliciadas para o tráfico. Em bom português: já que o Estado e a sociedade foram incompetentes para garantir que crianças dediquem sua infância aos estudos e ao desenvolvimento pessoal, vamos aceitar isso e legalizar nossa incompetência permitindo que trabalhem.
Treze crianças e adolescentes foram encontrados trabalhando em três casas de produção de farinha de mandioca no município de Ipubi, sertão de Pernambuco, pelo grupo móvel de fiscalização do governo federal, em maio deste ano. Entre elas, uma criança de apenas três anos de idade.
“A cena com a criança de três anos raspando mandioca foi bem chocante. Como a mãe não tinha com quem deixá-la por falta de creches ou familiares, começou a levá-la. E, a partir daí, passou a ajudar no trabalho”, explica André Dourado, auditor fiscal do trabalho e coordenador da operação. O procurador do Trabalho Ulisses Dias Carvalho explica que a falta de alternativas econômicas para emprego na região aliada à falta de estrutura de assistência social acabam empurrando crianças e adolescentes para esse tipo de trabalho.”Isso nos assustou profundamente. Em um dos estabelecimentos, oito dos 34 trabalhadores eram menores de idade. Ou seja, quase 25% da mão de obra da casa de farinha era de crianças e de adolescentes, de três a 17 anos, em uma atividade que está na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil”, afirma.
Roubando empregos de adultos
E além de roubar a infância, o trabalho infantil também impacta o empregos dos mais velhos. “Em um mundo onde há 210 milhões de adultos sem emprego, por que 152 milhões de crianças estão envolvidas em trabalho infantil?” A pergunta me foi feita pelo indiano Kailash Satyarthi, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 2014, por sua luta contra o trabalho escravo e infantil.
Cada uma das respostas a ela é capaz de provocar mais vergonha que a outra: porque crianças são mais facilmente exploradas, porque paga-se menos a crianças, porque não se garante condições para as famílias pobres.
“O valor do trabalho é importante, mas para adultos. O valor da educação é o que é mais importante para as crianças e para toda a sociedade, pois garante o crescimento econômico futuro. No que diz respeito aos adolescentes de 15 a 18 anos, o governo deve promover treinamento de habilidades e empregabilidade, além de garantir educação gratuita e de qualidade para todas as crianças, sem discriminação”, afirmou ao blog no ano passado.
Em todo o mundo, o número de crianças trabalhando caiu de 260 milhões para 152 milhões nos últimos 20 anos, de acordo com o Nobel da Paz. Há menos de 60 milhões delas fora da escola, em comparação às 130 milhões de antes. Mas a melhora ficou mais lenta agora. Segundo ele, “nós não estamos investindo o suficiente na educação básica”. De acordo com o IBGE, 1,8 milhão de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalhavam no Brasil em 2016. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, por outro lado, tem afirmado que a conta não inclui o trabalho de subsistência e, portanto, o número deveria ser de 2,5 milhões.
Crianças ricas vs crianças pobres
Ao adotarmos como verdade as frases como as de Bolsonaro ou as outras que enumerei acima, simplesmente abrimos mão de refletir sobre a própria exploração. E reproduzimos um modelo imposto, em que os filhos dos mais ricos não precisam trabalhar antes de completar sua pós-graduação enquanto os dos mais pobres abraçam o batente antes de entrar na escola. Ou deixam-na por causa do serviço.
Tempos atrás, o então presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, defendeu o aumento na idade mínima legal para se começar a trabalhar no Brasil. Ele afirmou que filhos de famílias ricas raramente começam a trabalhar efetivamente antes dos 25 anos de idade – e depois de muito investimento e tempo de formação. Enquanto isso, filhos de pais pobres são condenados a começar a trabalhar cedo, não conseguem evoluir em termos de formação e acabam ocupando postos de baixa qualificação e mal remunerados que compõem a base do mercado de trabalho.
Todas os filhos de famílias ricas fumam um paralelepípedo de crack por dia? A diferença entre elas e as de famílias pobres é o caráter ou a falta de oportunidades?
“Hoje em dia é tanto direito, tanta proteção que temos uma juventude aí que tem uma parte considerável que não tá na linha certa. O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, disse também Bolsonaro em sua live.
Ao longo do anos, acompanhei, como jornalista, muitas dessas histórias “dignificantes” que já trouxe aqui.
O governo federal encontrou 30 crianças escravizadas, entre um grupo de adultos, no Pará em área de difícil acesso, às margens da Rodovia Transamazônica. Fazenda de cacau. Uma das crianças ficou cega após acidente de trabalho. Ela estava carregando frutos, quando tropeçou em um tronco e caiu com o olho esquerdo em um toco de madeira. A maioria das crianças estava doente, algumas com leishmaniose e outras com úlcera de Bauru.